O ano de 2021 de julgamentos no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) terminou com a reversão de entendimentos de forma favorável aos contribuintes. O movimento foi um reflexo da alteração no critério de desempate no tribunal, que aliado à ampliação do limite de valor para julgamento nas turmas permitiu que importantes teses que antes eram decididas a favor do fisco passassem a ser julgadas a favor dos contribuintes.
Entre os temas que começaram a ser decididos de forma favorável aos contribuintes estão a possibilidade de dedução de Juros sobre Capital Próprio (JCP) retroativo; regularidade da trava de 30% para compensação no caso de extinção da pessoa jurídica por incorporação; limites da coisa julgada na cobrança de CSLL; incidência de contribuição previdenciária sobre stock options, hiring bonus e tíquete alimentação e concomitância de multa isolada e de ofício.
A alteração de jurisprudência pôs em alerta até mesmo a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN), e o receio de derrotas em casos de grande valor em 2022 vai exigir mobilização da cúpula da procuradoria. Com a volta dos julgamentos presenciais em 2022, a expectativa é que processos de alto valor sejam pautados no conselho, com possibilidade de derrota da Fazenda.
O início da aplicação do desempate pró-contribuinte no Carf coincidiu com o
auge das restrições sanitárias devido à pandemia da Covid-19. Em abril de 2020, foi promulgada a lei 13.988 que, dentre outras medidas, acrescentou o artigo 19-E à lei 10.522/02, instituindo a decisão a favor do contribuinte em caso de empate no Carf. Até então, o conselho utilizava o voto de qualidade, por meio do qual o presidente da turma, representante do fisco, proferia voto duplo em caso de empate.
Como o Carf passou a ter sessões remotas e limitou o valor dos casos em julgamento – o montante cresceu gradativamente até atingir os atuais R$ 36 milhões –, os casos envolvendo somas mais altas e, consequentemente, as teses consideradas mais relevantes por tributaristas, demoraram a ser impactados pela mudança na legislação. Houve, ainda, muitos pedidos de retirada de pauta de casos considerados importantes por advogados e pela Fazenda Nacional.
Segundo especialistas consultados pelo JOTA, as principais teses pró-fisco começaram a ser revertidas a partir de agosto, quando as sessões virtuais do Carf, até então gravadas e disponibilizadas dias depois do julgamento, começaram a ser transmitidas ao vivo.
O cenário tornou-se mais favorável ao contribuinte mesmo com a limitação à aplicação do 19-E imposta pela Portaria 260 do Ministério da Economia, de julho de 2020, que restringiu o desempate pró-contribuinte a matérias relacionadas à determinação e exigência de crédito tributário por meio de auto de infração ou notificação de lançamento.
“Temos um contexto que já era, em certo sentido, esperado, em que a alteração da sistemática do voto de qualidade provocou alteração de alguns entendimentos, principalmente na Câmara Superior, que tinha muitos temas controvertidos resolvidos pelo voto de qualidade”, comenta Alessandro Cardoso, do Rolim, Viotti, Goulart, Cardoso Advogados.
Coisa julgada e concomitância de multas
Em agosto, o tribunal administrativo teve resultado favorável ao contribuinte em três matérias cujas decisões antes favoreciam o fisco. Uma das mais emblemáticas aconteceu em 12 de agosto, quando a 1ª Turma da Câmara Superior julgou o processo 16327.002083/2005-41, envolvendo a Cifra S.A, sobre os limites da coisa julgada para exigência de CSLL.
O contribuinte possui decisão transitada em julgado afastando a cobrança de CSLL com base na irregularidade da lei 7689/88, que instituiu o tributo. Posteriormente, no entanto, o Supremo Tribunal Federal (STF) declarou a constitucionalidade da contribuição. No Carf, prevaleceu a tese de que a coisa julgada não pode ser relativizada, não podendo ser cobrada do contribuinte a CSLL. O tema está em pauta também no STF, que pode definir a questão no primeiro semestre de 2022.
Em 13 de agosto, foi a vez de a turma reverter o entendimento de que a Súmula 105 do Carf, que trata da impossibilidade da concomitância de multa de ofício e multa isolada, só era aplicável a lançamentos efetuados até 2007. A decisão foi tomada no processo 10882.721522/2017-71, envolvendo a Kingstar Colchões Ltda.
“A intepretação era que o alcance era para lançamentos até 2007, pois depois houve uma alteração do dispositivo da lei 9.430/96, citado na súmula. Mas, para os conselheiros do contribuinte, o alcance jurídico da súmula valeria mesmo após 2007. Eles entenderam que a alteração legislativa não mudou a eficácia do conteúdo jurídico da súmula”, comenta Cardoso.
Também houve mudança de entendimento na 2ª Turma da Câmara Superior. Em 24 de agosto, a aplicação do desempate pró-contribuinte levou à vitória da tese de que o hiring bonus (bônus de contratação) não tem natureza salarial, incidindo, portanto, contribuição previdenciária. O processo foi o 17546.000495/2007-97, envolvendo a Ambev.
Trava de 30% e JCP retroativo
Outro caso paradigmático foi o processo 19515.007944/2008-00, da PEM Engenharia, que discutiu a aplicação da trava de 30% para compensação de prejuízo fiscal de IRPJ e saldo negativo de CSLL no caso de a empresa ser extinta por incorporação. A decisão foi proferida em 1º de setembro pela 1ª Turma da Câmara Superior.
“A trava foi aceita como constitucional, mas, quando a empresa vai ser extinta, incorporada por outra empresa, aqueles prejuízos fiscais não vão mais ser utilizados. Não seria o caso de permitir que a trava não se aplicasse no momento da extinção? Essa discussão mudou muito no Carf, mas, mais recentemente, a gente verificava situações em que o contribuinte perdia por voto de qualidade”, afirma Giácomo Paro, coordenador da área de Tributário do Souto Corrêa.
Em 3 de setembro, a turma ainda julgou favoravelmente ao contribuinte caso referente à possibilidade de dedução de JCP retroativo, ou seja, apurado em exercício anterior. A decisão ocorreu no julgamento do processo 16327.001202/2009-72, envolvendo o Banco Santander.
“A gente sempre deu a entender para as empresas que era possível fazer [dedução retroativa do JCP]. Foi uma decisão que gerou muita repercussão no mercado. Todos os conselheiros do fisco votaram contra e todos do contribuinte votaram a favor. Foi um caso muito característico da aplicação dessa nova sistemática”, comenta o advogado Alessandro Cardoso.
Tratados internacionais e tíquete alimentação
Em 6 de outubro, a 1ª Turma da Câmara Superior aplicou o desempate pró-contribuinte no processo 16561.000065/2009-86, envolvendo a Intercement Brasil S/A. Prevaleceu a tese de que o artigo 74 da MP 2.158/01, que trata da incidência do IRPJ e da CSLL sobre o lucro de controlada ou coligada no exterior, não se sobrepõe ao artigo 7º dos tratados internacionais para evitar a bitributação.
“O fisco criou essa tese de que o artigo 74 da MP 2158 se sobrepõe ao artigo 7º das convenções, que impede de tributar o lucro apurado por empresa no exterior. Houve essa mudança pelo 19-E. Foi super importante, até para a imagem do Brasil lá fora. Estava se rasgando os tratados que o Brasil assinava”, afirma Cassio Sztokfisz, sócio do Schneider Pugliese.
Em decisões mais recentes, ainda sem acórdão publicado, o desempate pró-contribuinte trouxe mudança de cenário também em casos envolvendo contribuição previdenciária sobre o tíquete alimentação e stock options.
Em 25 de outubro, a 2ª Turma da Câmara Superior decidiu a favor do contribuinte no processo 12963.000816/2009-81, da DME Distribuição S.A – DMED, estabelecendo que o pagamento em tíquete não descaracteriza a natura não remuneratória da verba, mesmo tendo sido feito antes da edição da lei 13.467/2017, que implementou a reforma trabalhista e pacificou a questão.
Nas turmas baixas, a 2ª Turma da 4ª Câmara da 2ª Seção afastou a incidência de Imposto de Renda Pessoa Física (IRPF) sobre stock options em julgamento de 12 de novembro. O stock options é um programa de incentivo por meio do qual empresas fornecem aos seus empregados o direito de adquirir ações a um preço fixo e com potencial de lucro. A discussão é se isso constitui remuneração. O processo é o 10880.734908/2018-43, envolvendo uma pessoa física.
Segundo Giácomo Paro, o tema tinha decisões pró-fisco com a aplicação do voto de qualidade. “Se você vai para os acórdãos antigos, de 2017 e 2018, você vai ver uma série [de decisões] pelo voto de qualidade”, comenta.
Constitucionalidade do desempate pró-contribuinte
O desempate pró-contribuinte no Carf é questionado em três ações diretas de inconstitucionalidade (ADIs) no STF. As ADIs 6399, 6403 e 6415 começaram a ser analisadas em junho, mas foram suspensas por um pedido de vista do ministro Alexandre de Moraes. O julgamento está empatado em 1X1.
Na avaliação de Sztokfisz, o critério de desempate pró-contribuinte tende a permanecer no ordenamento jurídico. “Nossa leitura é que dificilmente vai ser afastado na via judicial. A gente acha que [o questionamento à constitucionalidade] não tem fundamento sólido e, no Congresso, a gente não vê clima para ser derrubado”, afirma.
Para Júlio Assis, sócio do Ferraz de Camargo e Matsunaga, o fim do voto de qualidade trouxe uma responsabilidade maior para os conselheiros, já que em caso de vitória do contribuinte no Carf não há possibilidade de recorrer à Justiça. “O fim do voto de qualidade traz uma responsabilidade maior para os conselheiros, principalmente nos casos em que o contribuinte sai vencedor e o contencioso termina. E para os conselheiros do fisco também, que terão que fazer um esforço técnico maior para convencer os conselheiros dos contribuintes”, diz.
O tributarista vê, ainda, um alinhamento do desempate pró-contribuinte com as garantias constitucionais. “Acho que esse dispositivo [artigo 19-E] guarda compatibilidade com nosso sistema jurídico, com a previsão constitucional, os direitos e garantias dos contribuintes. É constitucionalmente reconhecido que o contribuinte é o elo mais frágil”.
Fonte: Jota