Os fundos de investimento imobiliário conseguiram um importante precedente na Câmara Superior do Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf) – a última instância do órgão. Os conselheiros da 1ª Turma, por maioria de votos, entenderam que os beneficiários de um fundo também podem ser controladores do empreendimento imobiliário, objeto de seus investimentos, sem gerar a equiparação com empresa e a consequente cobrança de impostos.
Em geral, os fundos de investimento imobiliário (FIIs) não são tributados. E os seus beneficiários ou são isentos, quando atendidos alguns requisitos, ou somente pagam impostos com a distribuição dos resultados. Contudo, a Lei nº 9.779, de 1999, que regulamentou os fundos, criou um limite para evitar concorrência predatória com as pessoas jurídicas que exploram as mesmas atividades – como incorporadoras e locadores de imóveis.
O artigo 2º da norma prevê que um fundo, para manter a vantagem fiscal, não pode aplicar recursos “em empreendimento imobiliário que tenha como incorporador, construtor ou sócio, quotista que possua, isoladamente ou em conjunto com pessoa a ele ligada, mais de 25% das quotas”. Se a regra não for cumprida, aplica-se a tributação prevista para as empresas – Imposto de Renda (IRPJ), CSLL, PIS e Cofins.
O caso analisado pela Câmara Superior é do Fundo de Investimento Imobiliário Península, pertencente ao empresário Abilio Diniz. A Receita Federal lavrou a autuação fiscal por entender que não foi cumprido o que determina o artigo 2º da Lei nº 9.779/99 (processo nº 16327.001752/2010-25).
O Fundo Península foi criado em 2005 com um único cotista, o empresário Abilio Diniz. Em seguida, a empresa por ele controlada, Reco Máster Participações, ingressou no fundo com a maior parte das cotas. O Península então adquiriu 60 imóveis, para pagamento em 20 anos, da Companhia Brasileira de Distribuição (CBD) – Grupo Pão de Açúcar -, na qual o empresário figura como um dos controladores. A fonte principal de receita do fundo são os aluguéis recebidos da própria CBD.
Essas operações aconteceram no contexto de reestruturação societária e mudança de controle da CBD, que envolveu a constituição de holding (Wilkes Participações) pelos sócios Abilio Diniz e o Grupo Casino, os quais passaram a deter, cada um, 50% do seu capital votante.
No julgamento, prevaleceu o voto do relator, conselheiro Luis Henrique Marotti Toselli. Para ele, o objetivo da norma (artigo 2º da Lei nº 9.779/99) foi a de evitar uma concorrência desleal, “proibindo o uso de FIIs contra as figuras, comuns no mercado de exploração imobiliária, do sócio do construtor e do sócio do incorporador, referindo-se, por exemplo, às sociedades de propósitos específicos ou ao dono da obra”.
No caso, como o fundo fez a aquisição de imóveis prontos para locação, “por óbvio afasta-se de imediato a presença das figuras do incorporador ou do construtor”, diz o conselheiro no voto, ao analisar a figura do sócio.
Ele acrescenta que “a CBD nunca foi ‘sócia’ do FII nos imóveis. Nem mesmo ninguém do Grupo Diniz, que são sócios indiretos do único cotista (Reco), e não coproprietário dos imóveis”. E que a CBD, “embora locatária e antiga proprietária dos imóveis, não manteve qualquer direito de propriedade sobre os imóveis, afinal alienou integralmente esses direitos ao FII Península, que passou a ser o beneficiário dos aluguéis e titular desses ativos imobiliários”.
De acordo com seu voto, “diante, então, da alienação integral dos imóveis ao fundo, somada ao fato de que os atos praticados não foram requalificados e nem tiveram suas causas jurídicas colocadas em xeque, deve-se admitir todos os efeitos jurídicos quanto à titularidade dos imóveis pelo FII Península, fato este mais do que suficiente para afastar qualquer possibilidade jurídica de existência de um sócio do empreendimento”.
Ainda afirma que “ora, em qualquer acepção, incluindo um empreendimento imobiliário, não se pode pensar na figura de sócio a alguém que não contribua com bens ou serviços para a respectiva atividade econômica, participando por isso diretamente dos lucros obtidos. Sob este viés, ainda que a atividade de aquisição de imóveis prontos para locação fosse um empreendimento imobiliário, admissível como sócio do empreendimento seria tão somente o coproprietário ou condômino dos imóveis adquiridos pelo FII Península”.
Para especialistas, o julgamento é relevante principalmente para fundos de investimento imobiliários que têm estruturas complexas e valores significativos envolvidos, como o Península. Hoje há 411 fundos disponíveis na B3. Este ano, já movimentaram R$ 19,7 bilhões. Ano passado, foram R$ 66,5 bilhões. E em 2020, R$ 54,1 bilhões.
O advogado Caio Cesar Nader Quintella, ex-vice presidente da 1ª Seção do Carf, afirma que o julgado é importante “não apenas por afastar a aplicação dessa verdadeira norma antielisão ou antiabuso no caso dessa estrutura societária adotada, mas por interpretar e sinalizar o conteúdo e os limites dessa regra, dando mais segurança aos players”.
A decisão, acrescenta, “trouxe uma interpretação mais objetiva, na análise de uma estrutura complexa, considerando as empresas intermediárias, e entendendo que, por ser mero beneficiário final, não poderia ser considerado o sócio, apenas por estar nas duas pontas da operação”.
Segundo o advogado Bruno Sigaud, do Sigaud Advogados, trata-se de tema de grande impacto para o mercado imobiliário e para os fundos de investimento. “Mesmo sem um posicionamento formal a respeito, viu-se nos últimos anos um movimento da Receita Federal em tentar alargar a definição contida no artigo 2º da Lei nº 9.779/99, ignorando-se a necessidade de haver concomitância entre a participação relevante do cotista no FII e seu investimento, como incorporador, construtor ou sócio, em empreendimento imobiliário investido pelo fundo”, diz.
Procurado pelo Valor, o Grupo Ourinvest, que administra o Fundo Península, não deu retorno até o fechamento da edição.
Em nota, a Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional (PGFN) afirma que a decisão reverteu a jurisprudência da 1ª Turma da Câmara Superior e das turmas ordinárias do Carf sobre o planejamento tributário que envolveu a utilização do FII Península pelo grupo econômico do empresário Abilio Diniz. E que a posição da PGFN é aquela que prevaleceu nos julgamentos anteriores (acórdãos 9101-004.580, 9101-004.090 e 3401-007.236).
Acrescenta que “o novo entendimento se resume ao caso concreto, considerando as peculiaridades fáticas da operação praticada pelo grupo econômico do Sr. Abilio Diniz”.
Fonte: Valor Econômico