Excessiva litigiosidade e insegurança jurídica representam uma tormenta para o crescimento econômico
No “Diagnóstico do Contencioso Judicial Tributário”, elaborado pelo Núcleo de Pesquisas em Tributação do Insper[1] em parceria com o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), uma das hipóteses investigadas foi a possível correlação entre os elevados estoques processuais e a ausência de regras que promovam um relacionamento mais cooperativo entre fiscos e contribuintes.
Para obter dados capazes de confirmar ou infirmar essa hipótese, a equipe de pesquisa questionou, por meio da transmissão de pedidos via Lei de Acesso à Informação (Lei 12.527/2011), se as Procuradorias e os fiscos objetos de estudo[2] possuem programas para premiar os contribuintes regulares, com medidas como a redução de sanções no caso de autorregularização, flexibilização na aceitação de garantias e canais específicos de atendimento.
Ao analisar as informações recebidas, é possível notar que cerca de metade (47,1%) dos órgãos respondentes afirmou possuir programas de conformidade que conduzem à autorregularização. Outros, ainda, afirmaram que estão estudando, desenvolvendo ou regulamentando programas dessa natureza, seja para sua implementação, seja para aprimoramento de programas vigentes (cf. Tabela 26 do relatório).
A despeito das respostas dos entes, é possível notar que as regras apontadas como indutoras à conformidade tributária não estabelecem medidas que estimulem um efetivo relacionamento cooperativo, indicando que os diversos fiscos no Brasil têm muito a desenvolver, especialmente quando comparado com a experiência internacional. Entre as regras consideradas pelas administrações tributárias como integrantes de um programa de conformidade, por exemplo, encontram-se medidas relacionadas à flexibilização de prazos para pagamentos (parcelamentos) e a concessão de descontos de multa para pagamento de autuações antes da instauração do litígio.
Como destacado no trabalho “Cooperative Compliance: A Multi-stakeholder and Sustainable Approach to Taxation”[3], o conceito de conformidade cooperativa foi criado como instrumento para conciliar o aprimoramento da conformidade fiscal com a melhoria do ambiente de negócios, pautando-se essencialmente por uma troca de concessões: a transparência e divulgação voluntária de informações fiscais pelos contribuintes é compensada por medidas que confiram mais certeza e tempestividade nas orientações do fisco.
Nessa esteira, os programas de conformidade, hoje amplamente adotados na experiência internacional, têm como principais benefícios a profusão do diálogo entre fisco e contribuintes, a garantia de respostas mais ágeis à fiscalização e às solicitações de acesso às informações fiscais, a ampliação da adequação voluntária à legislação tributária, invertendo a lógica do litígio, o aumento da segurança jurídica, do grau de certeza nas relações tributárias e da consistência nas orientações da administração, além do esclarecimento tempestivo de dúvidas e questões controvertidas apresentadas pelos contribuintes[4].
Tais objetivos podem ser alcançados por meio de diferentes instrumentos, como a instituição de marcos de controle fiscal, com procedimentos mais sólidos de redução de riscos fiscais, e a elaboração de um código de boas práticas que discipline os princípios orientadores da relação de conformidade e esclareça as condutas esperadas de Fisco e contribuintes no âmbito do programa, a exemplo do que se verifica na Holanda, no Reino Unido, nos Estados Unidos, no Canadá, em Portugal, na Espanha e em outros países.
Mas há um ponto que nos parece central para a configuração de um programa de conformidade: a adequação do tratamento conferido aos contribuintes de acordo com sua classificação de risco, privilegiando aqueles com histórico de comportamento cooperativo e conforme à legislação tributária. Tal característica representa um ganho não apenas ao contribuinte considerado de baixo risco, mas ao fisco que poderá concentrar seus esforços de fiscalização e controle naqueles contribuintes que demandam acompanhamento mais próximo e detalhado.
No Brasil, o estado de São Paulo foi pioneiro na criação de programas de conformidade. O Nos Conformes, Programa de Estímulo à Conformidade Tributária, pretende estabelecer um ambiente de confiança recíproca entre fisco e contribuintes, privilegiando a orientação, o atendimento e a autorregularização dos contribuintes.
O modelo vem sendo seguido por outros estados, por exemplo: Alagoas criou o Contribuinte Arretado; Rio Grande do Norte, o Contribuinte Exemplar; Roraima, o FisConforme; Ceará, o Contribuinte Pai D’Égua; e Rio Grande do Sul, o Nos Conformes RS.
No âmbito federal, a Receita Federal está formulando o Confia, um programa de conformidade cooperativa fiscal que objetiva estreitar e melhorar a relação entre fisco e contribuintes, promovendo transparência, segurança jurídica, redução da litigiosidade tributária e melhoria do ambiente de negócios.
A construção do Confia foi planejada para ser colaborativa e realizada em cinco etapas. A primeira fase consistiu na criação de grupo de trabalho e no alinhamento de objetivos e interesses entre a administração tributária federal e grandes empresas. A segunda, ainda em execução, pretende desenhar o modelo de conformidade cooperativa a partir das melhores experiências internacionais. Na sequência, espera-se (i) testar o modelo em um grupo pequeno de empresas voluntárias, (ii) implementar o programa em grupo pouco maior de empresas e, por fim, (iii) expandi-lo progressivamente.
A iniciativa da Receita Federal, com o Confia, representa um grande avanço na relação historicamente conflituosa entre fisco e contribuintes. Já na concepção do modelo, de modo bastante positivo, a Receita Federal envolveu grandes empresas, integrantes de diversos setores da economia, e algumas entidades representativas da sociedade. A definição de um programa que se adeque à complexa realidade brasileira, cujo volume de litígios não é encontrado em qualquer outro sistema, é um desafio árduo. Para conceber um modelo capaz de permitir a aproximação e o estabelecimento de relação cooperativa entre fisco e contribuintes é preciso ouvir os mais diversos segmentos da sociedade, especialmente a academia, que poderá analisar os problemas e soluções sem que tenha que defender interesses individuais ou setoriais.
A maior dificuldade para a implantação de um programa de conformidade eficaz, que permita a instauração de uma relação cooperativa entre esses dois oponentes, é romper a cultura de desconfiança que se encontra arraigada entre os fiscos e os contribuintes. Essa tarefa precisa ser iniciada com medidas simples de aproximação, que, paulatinamente, sejam capazes de estabelecer um novo paradigma.
Atualmente um dos principais pontos de discussão no âmbito do Confia diz respeito à (in)aplicabilidade de multas àqueles contribuintes que tenham observado os marcos de controle fiscal e as boas práticas tributárias, agindo em conformidade com as regras de governança submetidas e previamente aprovadas pela autoridade fiscal. Iniciada uma discussão interpretativa em que, após amplos debates entre as duas partes, chegou-se a um consenso, o próprio sistema prevê meios de pagamento do tributo sem incidência de multa.
Mas como fazer, se, ao final das discussões, o contribuinte não concordar em pagar o valor que o fisco entende devido? Não há dúvidas que tal situação poderá ocorrer e que caberá a algum terceiro definir quem está com a razão. Nesse caso, a exigência deverá ser acrescida de penalidade, mesmo tendo o contribuinte seguido todas as regras do programa de conformidade? Esses impasses têm dificultado a evolução do programa.
A cultura do litígio, da coerção e da punição dificulta o direcionamento da relação fisco-contribuintes para mares mais tranquilos. Felizmente, parece que os fiscos e os contribuintes já perceberam que o caminho da excessiva litigiosidade e da insegurança jurídica representa uma verdadeira tormenta, que torna o mar revolto para o crescimento econômico. É momento de aproveitar a abertura do tempo, representada por esta propensão à instituição de programas de conformidade, que servirão como faróis e evitarão que o nosso sistema tributário continue a empurrar nosso país contra o rochedo.
[1] A equipe de pesquisa foi composta por Luciana Yeung Luk Tai (Coordenadora Acadêmica), Breno Ferreira Martins Vasconcelos (Coordenador de Campo), Daniel Souza Santiago da Silva (Coordenador de Campo), Danilo Panzeri Nogueira Carlotti (Coordenador de Campo), Leonardo de Andrade Rezende Alvim (Coordenador de Campo), Larissa Luzia Longo, Carla Mendes Novo, Maria Raphaela Dadona Matthiesen e João Victor Emile Andrade Safieh. Os achados mencionados neste artigo são fruto do trabalho conjunto desenvolvido pela equipe.
[2] PGFN e as Procuradorias estaduais e municipais das 16 capitais abrangidas pela pesquisa, bem como a RFB e as Secretarias de Fazenda e Finanças das mesmas 16 capitais.
Fonte: Jota