Em dezembro de 2019, o STF julgou recurso em que se discutiu a criminalização do empresário que deixa de recolher o ICMS.
Como a redução do tributo por meio do emprego de fraude é, notadamente, crime, algumas empresas passaram a registrar as operações regularmente – com emissão de documentos fiscais, declaração em GIA e apuração do ICMS a pagar –, mas passaram a deixar de recolher a guia de arrecadação. Era entendimento pacífico da jurisprudência dos tribunais, inclusive dos tribunais superiores, que o inadimplemento de tributo declarado não configurava ato ilícito – seja para fins tributários, de responsabilização do sócio-administrador pela dívida; seja para fins penais.
Tal cenário começou a se alterar há alguns anos, quando o Ministério Público de alguns Estados começou a denunciar os administradores de empresas devedoras de ICMS, sob a alegação de que tal ato configuraria apropriação indébita. Tal crime estaria previsto no art. 2º, II, da Lei nº 8.137/1990, que assim dispõe:
Art. 2° Constitui crime da mesma natureza:
(…)
II – deixar de recolher, no prazo legal, valor de tributo ou de contribuição social, descontado ou cobrado, na qualidade de sujeito passivo de obrigação e que deveria recolher aos cofres públicos;
Lei nº 8.137/1990, artigo 2º, II
Algumas denúncias foram aceitas, processando-se ações penais pelo inadimplemento de ICMS. Neste cenário, um recurso chegou ao STJ e, por maioria, a Corte Superior entendeu, em 2018, que o inadimplemento de ICMS configuraria o crime de apropriação indébita, uma vez que o valor, embutido no preço das mercadorias vendidas, não pertenceria à empresa, mas ao Estado. Deste recurso interpôs-se outro recurso, agora para o Supremo Tribunal Federal, julgando-se, em dezembro de 2019, que o não pagamento do ICMS, de forma reiterada e com o dolo de apropriação, configura o crime de apropriação indébita.
Fixou-se, inclusive, uma tese, que deve orientar os julgamentos daqui em diante. Ei-la:
O contribuinte que, de forma contumaz e com dolo de apropriação, deixa de recolher o ICMS cobrado do adquirente da mercadoria ou serviço incide no tipo penal do art. 2º, II, da Lei nº 8.137/1990.
O inteiro teor do acórdão ainda não foi publicado pelo STF, de sorte que não se tem acesso, neste momento, à integra dos fundamentos que levaram os Ministros da Corte Suprema a julgar nesse sentido. De qualquer modo, a tese em si pode orientar algumas ações.
Diz-se isso, porque, desde o início da pandemia do Coronavírus, com a decretação de situação de calamidade pública em vários locais e a determinação de fechamento temporário de um número expressivo de empresas, alguns empresários vivenciaram um rápido esgotamento de caixa, com a continuidade de uma série de despesas correntes. Neste cenário em que o volume de obrigações se tornou maior do que a capacidade de pagamento, a pergunta recorrente é: qual conta deve ser paga primeiro? E mais, qual obrigação pode ser postergada?
Em termos tributários, muitos orientaram que não se poderia deixar de recolher os tributos retidos (contribuição previdenciária, imposto de renda retido na fonte, ICMS-ST), bem como o ICMS, diante do novo entendimento do STF acerca da criminalização do inadimplemento.
De fato, há esse entendimento do STF, mas a própria tese traz duas assertivas que não podem ser desconsideradas. Diz a tese que comete crime o contribuinte que deixa de recolher o ICMS de forma contumaz e com dolo de apropriação.
Há aqui informações relevantes acerca do elemento subjetivo do tipo penal. Não é qualquer contribuinte que deixa de recolher o ICMS que incide no crime. É aquele que o faz de forma contumaz, reiteradamente, com dolo de apropriação, ou seja, como meio de financiamento da sua atividade empresarial e, muitas vezes, praticando concorrência desleal.
Nos parece que se o inadimplemento se der momentaneamente e em virtude da crise que estamos atravessando não teremos presente o elemento subjetivo do tipo penal. O empresário não recolherá o ICMS não porque adotou esta prática como meio de financiamento da sua atividade, mas porque teve que escolher quais obrigações adimplir e, sabe-se, há um sem número de obrigações legalmente preferenciais, como são as de natureza trabalhista.
Por óbvio que tal análise é deve ser feita caso a caso, não havendo uma receita aplicável a todos os contribuintes. O que nos parece certo é que não é possível afirmar que todo e qualquer inadimplemento de ICMS caracterizará o crime de apropriação indébita, de modo que isso não deve se tornar mais um motivo para angústia dos empresários.
Por Samuel Hickmann