Ações tributárias representam 74,3% do total judicializado pelas 19 maiores companhias abertas
As 19 maiores empresas abertas não financeiras brasileiras questionam na Justiça a cobrança de R$ 559 bilhões em tributos pela União, Estados e municípios. O montante representa 74,3% das estimativas com ações judiciais em geral – quando consideradas as contingências nas demonstrações financeiras de 30 de setembro de 2022, segundo levantamento do Valor Data.
Os valores envolvidos nesses processos apontam, segundo especialistas, para um quadro preocupante, em comparação com outros países, e demonstram a necessidade de uma reforma no sistema tributário nacional. Por aqui, essas disputas pesam 17 vezes mais para as empresas do que no exterior, conforme estudo do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) em parceria com o Insper.
Para algumas companhias, as contingências fiscais representam mais de 90% do total de disputas indicadas em seus informes financeiros. Esse é o caso da Gerdau (91,3%), Ambev (97,5%), Grupo Pão de Açúcar (92,5%), Sendas Distribuidora (93,3) e Natura (90,5%). O volume de processos fiscais é formado principalmente por disputas sem provisionamento, em razão de não haver chance de perda provável na avaliação das companhias.
Um dos motivos para esse peso relevante das disputas tributárias está na complexidade da legislação, segundo Nelson Machado, professor de economia na FGV e diretor no Centro de Cidadania Fiscal (CCiF), think tank que elaborou o texto original da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) nº 45. O texto propõe a substituição do PIS, Cofins, ICMS, ISS e IPI por um imposto sobre bens e serviços (IBS).
Levantamento do Instituto Brasileiro de Planejamento e Tributação (IBPT) mostra essa complexidade. Hoje estão em vigor 39 mil normas tributárias no Brasil. Foram editadas por União, Estados e Distrito Federal e municípios, que hoje cobram 64 tributos – entre impostos, contribuições, fundos e taxas.
É cobrado o ICMS sobre a circulação de mercadorias e ISS sobre serviços, uma separação que era relativamente fácil há 50 anos, mas que hoje gera um contencioso considerável sobre qual tributo deve ser pago em cada situação, avalia Machado. “Nosso sistema é tão caótico que ele produz e aumenta a litigiosidade.”
O professor lembra que a cobrança de ICMS por 26 Estados mais o Distrito Federal ainda dá margem para a guerra fiscal, que pode levar uma empresa a decidir se instalar em um Estado pelos benefícios oferecidos. “O imposto não deveria induzir à decisão de se instalar em um ou outro lugar.”
Mas não é nem o ICMS nem o ISS o campeão do contencioso. Hoje o IPTU se destaca com o maior volume de ações – cerca de 25% do total (528.175 processos), conforme a pesquisa CNJ/Insper.
Os campeões federais e também mais significativos para empresas abertas, com base no estudo, são contribuição previdenciária (8,2%, um total de 174.128 processos), o PIS e Cofins, com 5,8% (122.868) e 5,5% (117.135) do total das ações tributárias.
Advogado tributarista e head de estudos do IBPT, Gilberto do Amaral lembra que, além da insegurança jurídica, a complexidade do sistema tributário nacional traz forte impacto ao caixa das empresas. De acordo com levantamento da entidade, as empresas gastam por ano, em média, 1,2% do faturamento bruto para administrar e executar as normas tributárias.
“A empresa não sabe direito que regra aplicar, o que gera custos enormes de compliance”, diz Eurico Diniz De Santi, sócio e diretor do CCiF. O professor destaca que a Receita ainda delega ao contribuinte a prerrogativa de interpretar a legislação e tem cinco anos depois disso para verificar se há algum erro e fazer uma autuação fiscal, o que é mais uma insegurança para as empresas. “Às vezes o passivo tributário é maior que o patrimônio líquido da companhia. Isso a desvaloriza.”
Para a União, a conta também é alta. A soma do impacto estimado das ações judiciais tributárias, com classificação de risco possível, que tramitam no Supremo Tribunal Federal (STF) e no Superior Tribunal de Justiça (STJ), é de R$ 862,9 bilhões, conforme a Lei de Diretrizes Orçamentárias de 2023.
Só discussões tributárias federais na esfera administrativa somam cerca de R$ 1 trilhão, considerando apenas os valores que estão no Conselho Administrativo de Recursos Fiscais (Carf). Há ainda outra conta, dos valores em que a dívida já foi confirmada na esfera judicial – ou nem chegou a ser discutida – mas ainda não foi paga: são os R$ 2,7 trilhões inscritos em dívida ativa.
Considerando o tempo médio de uma disputa fiscal no Brasil, as empresas desembolsam valores “exorbitantes” para a sua manutenção – seja com taxas judiciais, custos com perícias, gastos com escritórios de advocacia e custos com garantias -, afirma a Ambev em nota ao Valor. A companhia destaca ainda a existência de um “custo intangível”, em virtude dos impactos reputacionais sofridos por uma empresa que carrega uma disputa fiscal em seu balanço.
De acordo com a companhia, a maior parte do contencioso brasileiro decorre de divergências de interpretação da legislação tributária. “Isso decorre, em especial, da complexidade da nossa legislação”, diz. Para a Ambev, uma reforma tributária que traga previsibilidade, simplificação e clareza seria um passo importante para redução do contencioso e aumento da segurança jurídica do país, com a melhoria do ambiente tributário, tornando o Brasil mais atrativo para investimentos.
Um executivo de outra grande empresa que atua em diferentes Estados ouvido pelo Valor destaca a dificuldade em lidar com as divergências entre normas estaduais, em especial. Uma atividade corriqueira, a transferência de mercadorias entre Estados, afirma, pode gerar autuações gigantes, por causa de divergências entre os governos. “Quem eu desagradar cobra uma multa imensa e, às vezes, com processo criminal de sonegação fiscal”, diz. Ele explica que, mesmo com centenas de pessoas dedicadas ao pagamento de impostos, há dificuldade em precificar produtos.
Entrevistas anônimas feitas na pesquisa CNJ/Insper mostram as diferenças entre o cenário nacional e o internacional. Uma empresa, por exemplo, citou que tem 1.476 processos tributários no Brasil e 16 no exterior, distribuídos por 14 países. Para Breno Vasconcelos, advogado tributarista e professor no Insper, apesar de ser uma amostra pequena e envolver empresas que, provavelmente, têm operações maiores no Brasil, é um indício de que o contencioso brasileiro é complexo.
Heleno Torres, titular de Direito Financeiro da Universidade de São Paulo (USP), considera ser necessário simplificar e resolver o sistema tributário nacional. Mas defende que essa reforma deveria ser feita por fases – partindo pelo PIS/Cofins. Por serem contribuições, acrescenta, as mudanças poderiam começar a valer em 90 dias. A ideia seria unificá-las. A desoneração da folha de pagamentos também entraria nessa primeira fase. A segunda fase, viria em 2024, com a reforma para unificar os impostos.
Para a sócia do Demarest Advogados, Priscila Faricelli, é preciso também uma reforma do contencioso fiscal. “Para uma empresa se defender na Justiça, ela precisa apresentar uma garantia integral (do valor cobrado). Se for um processo de bilhões, é algo inviável até para grandes empresas”, diz, acrescentando que outra questão a ser discutida são os valores das multas, que podem chegar a 150%. “Um auto de infração que começa em R$ 100 milhões, facilmente chega a R$ 450 milhões.”
Procuradas pelo Valor, as empresas Gerdau, Pão de Açúcar e Sendas Distribuidora não quiseram comentar o assunto.
Fonte: Valor Econômico