Contribuintes com débitos de tributos municipais – como ISS, IPTU e ITBI – de quase todas as capitais brasileiras poderão ser impactados pela decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) que definirá se as prefeituras são obrigadas a limitar a atualização dessas dívidas ao índice adotado pela União, ou seja, a taxa Selic. A Corte aceitou analisar o tema em repercussão geral.
A decisão, dessa forma, deverá ser replicada pelo Judiciário de todo o país. Não há, ainda, data marcada para o julgamento.
Atualmente, pelo menos 24 capitais adotam índices de inflação anual para atualizar o valor de débitos tributários, de acordo com levantamento da Associação Brasileira das Secretarias de Finanças das Capitais (Abrasf). O município de São Paulo, por exemplo, aplica o IPCA. O do Rio de Janeiro, o IPCA-E. Manaus e Rio Branco, o INPC. Ainda incide juros de mora de 1% ao mês. Belo Horizonte é uma exceção. Adota a Selic desde janeiro desse ano.
Sem a imposição da Selic como teto, dizem advogados tributaristas, os municípios cobram juros e correção monetária que aumentam significativamente o valor das dívidas dos contribuintes. Por isso, mesmo com a redução da diferença entre os índices de inflação e a Selic nos últimos meses, os questionamentos continuam.
No ano passado, por exemplo, os débitos tributários no Rio de Janeiro foram atualizados em 22% – 10% do IPCA-E mais os 12% de juros de mora. Em comparação, no plano federal, a atualização foi pela Selic, que fechou o ano em 9,25%. Hoje, está em 13,25%.
A advogada Luiza Lacerda, sócia do BMA Advogados, faz uma simulação. Um débito de R$ 10 mil vencido em janeiro de 2017 virou, pelos índices municipais, R$ 20,5 mil em janeiro deste ano. Com a correção pela Selic, o valor atualizado seria de R$ 12,8 mil no mesmo período.
“Os débitos municipais sobem vertiginosamente. Em apenas cinco anos, temos uma diferença de quase 40%”, diz Luiza.
A tributarista aponta que muitos juízes não aplicam para os municípios a decisão tomada pelo STF em relação aos Estados. Em 2019, a Corte definiu que os governos estaduais podem determinar os índices de rreção monetária e taxas de juros de mora incidentes sobre seus créditos fiscais, desde que limitados aos percentuais estabelecidos pela União para os mesmos fins (RE 1.216.078, Tema 1.062).
O próprio presidente do STF, ministro Luiz Fux, reconhece que a Corte tem jurisprudência oscilante sobre o tema. Estende o precedente dos Estados para os municípios em alguns casos. Em outros, barra a análise do recurso, o que faz prevalecer as decisões de tribunais que afastam a limitação à Selic.
Fux é relator do recurso extraordinário (RE) 1346152 em que será travada a discussão se os municípios estão sujeitos ao teto federal (Tema 1217). De acordo com ele, compete ao STF, “manifestar-se acerca da aplicabilidade do entendimento firmado no Tema 1.062 aos casos em que lei municipal estabeleça índice de correção monetária e taxa de juros de mora incidentes sobre créditos tributários, sem limitação aos percentuais fixados pela União para os mesmos fins, atualmente a Taxa Selic”.
A discussão chegou ao STF a partir de recurso da Procuradoria-Geral do município de São Paulo contra uma empresa de pequeno porte da área de tecnologia e segurança. A sentença de primeiro grau validou a cobrança do débito tributário com IPCA mais 1% ao mês, como prevê a legislação municipal. Mas o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) reverteu a decisão, determinando a observância da Selic como teto de atualização.
Há pelo menos 556 processos sobre o assunto no tribunal paulista. Atualmente, o município de São Paulo tem R$ 170 bilhões em discussão na esfera administrativa e judicial.
Mas a situação é comum em relação a outros municípios, segundo Fux. “A questão controvertida, à toda evidência, não se mostra limitada à legislação do município de São Paulo, pois a exegese constitucional fixada no sistema de precedentes pautará a cobrança de créditos tributários em todos os municípios”, disse.
Para a advogada Luiza Lacerda, o fundamento da decisão do STF relativa aos Estados se aplica ainda mais aos municípios. “Os Estados possuem competência concorrente para legislar sobre direito financeiro. Fica preservada a autonomia do Estado limitada ao teto federal”, explica. “Os municípios sequer têm essa competência. Deveriam observar o superteto da União ou o subteto do Estado”, acrescenta.
A Procuradoria-Geral do Município de São Paulo, em nota ao Valor, diferencia a situação em relação a Estados. Explica que a decisão tomada pelo STF em 2019 analisou situação em que um Estado criou índice de correção, invadindo a competência federal. “O que não é o caso do município de São Paulo, que se utiliza de índice estabelecido pela União como fator de correção válido, qual seja, o IPCA”, diz.
A procuradoria aponta, ainda, que a Selic não reflete perda de valor da moeda. “Mas sim a remuneração de títulos públicos federais em razão de política monetária adotada pelo governo federal, seja para controle de variação cambial, ou atração de capital estrangeiro para o país.”
Segundo Ricardo Almeida, assessor jurídico da Abrasf, a vinculação da correção monetária a um índice federal de preços amplo não afetará os municípios. Mas a obrigação de adoção da Selic, sim. “As perdas seriam gigantescas. Mais do que perdas de arrecadação, está em jogo o amesquinhamento abusivo das competências tributárias dos municípios”, afirma.
Fonte: Valor Econômico