No dia 22 de setembro de 2023, foi iniciado o julgamento dos quatro embargos de declaração apresentados nos Recursos Extraordinários 949.297 e 955.227, leading cases dos Temas de Repercussão Geral 881 e 885. Nas motivações dos declaratórios, deixando de lado questões de obscuridade sobre o próprio mérito dos julgados, o tema mais sensível e urgente aos contribuintes está no pedido de reconsideração da modulação de efeitos, que, por um placar de 6 a 5, não foi aplicada quando do julgamento presencial dos recursos em fevereiro de 2023.
Naquele momento, o STF entendeu que não seria necessária a modulação de efeitos da decisão porque a confiabilidade do contribuinte no sistema jurídico estaria assegurada pelo próprio julgamento de constitucionalidade dos tributos; tendo sido afastada, inclusive, a alegação de que o precedente exarado pelo STJ no REsp 1.118.893, julgado em março de 2011 e que fixou a tese em sentido contrário ao decidido em fevereiro pela Corte Suprema [1], seria motivo de confiança jurídica suficiente para ensejar a modulação de efeitos. Agora, com o início do julgamento dos embargos de declaração, o ministro relator Luís Roberto Barroso reiterou as fundamentações expostas quando do julgamento inicial e os negou provimento. Por pedido de destaque do ministro Luiz Fux — grande defensor da modulação no julgamento presencial em fevereiro — o caso aguarda pauta para julgamento presencial.
Em relação à modulação de efeitos, ao nosso ver, dois são os principais problemas com o racional empregado pelo STF para não aplicá-la: (1) as decisões anteriores do STF, em nenhum momento, sinalizaram o conteúdo expresso no julgamento dos Temas 881 e 885; e (2) o novo entendimento de que as decisões do STJ não vinculam o STF e não demandam a modulação de efeitos é contraditório a sua própria jurisprudência e fere a isonomia.
Quanto ao primeiro problema, o que entendeu a corte é que, por ter julgado o mérito sobre a constitucionalidade do tributo em momento anterior, teria sinalizado aos contribuintes sobre o mérito julgado no presente e, então, não haveria “razões de segurança jurídica” que justificariam a modulação de efeitos. No caso concreto posto ao STF, o ministro Luís Roberto Barroso entendeu que, uma vez que a corte teria declarado a constitucionalidade da CSLL lá em 2007, aqueles contribuintes que possuíam coisa julgada que os permitiam não efetuar a cobrança já sabiam, desde lá, que deveriam recolher o tributo. Vejamos nos termos do voto:
“Não me parece, pedindo todas as vênias a quem compreenda de modo diferente, ser o caso de modulação diante do quadro fático e jurídico relativo à contribuição social sobre lucro líquido. […] E aqui, em relação à contribuição social sobre lucro líquido, pedindo todas as vênias, desde 2007, decisão plenária do Supremo em controle por ação direta, já não havia a mais mínima dúvida de qual era a posição do Supremo sobre a exigibilidade daquele tributo. Portanto, parece-me inequívoco que o tributo se tornou devido a partir de 2007 apenas considerando a anterioridade nonagesimal.”
Pelo que se percebe, são confundidos o mérito julgado lá — constitucionalidade do tributo — e o julgado aqui — a cessação ou não dos efeitos da coisa julgada que exime a cobrança de um tributo depois julgado constitucional e devido.
Ainda que tenha julgado que determinado tributo é constitucional (seja no caso da CSLL, seja em outro caso semelhante), em nenhum momento decidiu a Corte, em qualquer um de seus pronunciamentos anteriores, quais os efeitos que tais julgamentos teriam sobre a coisa julgada individual (então) inconstitucional. Ora, sequer se sabia, até agora, se a decisão em controle concentrado ou difuso com repercussão geral poderia alterar o estado da coisa julgada; e, se positivo, se seria necessária ou não ação rescisória ou revisional. A norma interpretada no caso foi criada e inserida no ordenamento jurídico apenas em fevereiro de 2023, com o julgamento dos Temas 881 e 885.
Há uma evidente obscuridade com o que tenta ser conceituado como “confiança na coisa julgada anteriormente formada”. Se não há manifestação anterior do STF sobre a afetação da coisa julgada por suas decisões com efeitos erga omnes em relações tributárias de trato continuado, não há qualquer forma de justa expectativa do contribuinte quanto à necessidade de pagar tributos após declaração de constitucionalidade.
Isso é dizer: as decisões que declararam a constitucionalidade dos tributos não sinalizam àqueles contribuintes que possuíam coisa julgada em sentido contrário sobre os efeitos que a decisão teria sobre a coisa julgada. Tal sinalização aconteceu unicamente a partir julgamento de mérito dos Temas 881 e 885, já que foi a única instância de análise pelo STF. É impossível ao contribuinte determinar, pelos julgamentos anteriores, se deveria ou não efetuar o pagamento do tributo, em especial se seria de forma automática ou não.
Ainda, apontou a ministra Rosa Weber pela ausência de “alteração do entendimento” apta a permitir a modulação de efeitos porque o STF já teria se manifestado pela desnecessidade de ajuizamento de ação rescisória para fazer cessar os efeitos da coisa julgada inconstitucional, conforme consta na ementa do RE 730.462/SP, julgado em 28 de maio de 2015: “Ressalva-se desse entendimento, quanto à indispensabilidade da ação rescisória, a questão relacionada à execução de efeitos futuros da sentença proferida em caso concreto sobre relações jurídicas de trato continuado“.
O apontamento, contudo, não pode ser considerado como sinalização de entendimento do STF que retiraria a confiança na coisa julgada dos contribuintes. Em primeiro lugar, a referência à ementa realizada pela ministra desconsidera que a frase não está completa.
Naquele caso, relatado pelo ministro Teori Zavaski, a frase foi acompanhada no relatório de mais uma oração, destacando que o tema das relações de trato continuado é “tema de que aqui não se cogita” [2]. Isso é, seja qual for o motivo pelo qual a frase foi inserida de forma incompleta na ementa, a referência a qual ela faz é a expressa exclusão da análise do tema de coisa julgada inconstitucional em relações de trato continuado do julgamento do RE 730.462/SP.
Em segundo lugar, o tema das relações de trato continuado (1) foi citado somente pelo ministro Teori Zavaski (2) para que fosse excluído da aplicabilidade da tese de repercussão geral daquele caso. Isso é, a frase da ementa citada nos Tema 881 e 885, além de ter sido retirada de contexto, não representa o entendimento do colegiado — isso é, não forma ratio decidendi. Não há, portanto, qualquer aplicabilidade do julgado pelo STF no RE 730.462/SP para conceber motivação que exclui a necessidade de modulação de efeitos nos Temas 881 e 885.
Esse primeiro problema, em suas esferas, é ainda mais assentado pelo segundo problema do julgado: quando a Corte entendeu que não seria necessária a modulação de efeitos ainda que o STJ tivesse decidido no REsp 1.118.893, julgado sob a sistemática dos Recursos Repetitivos, que a coisa julgada inconstitucional manteria os seus efeitos mesmo que o STF teria decidido, posteriormente, de forma contrária as razões que a formaram.
Quanto ao ponto, a argumentação do STF é no sentido de que a corte não precisa considerar o julgamento de outras cortes porque é apenas ela a competente para julgar matéria sob a índole exclusivamente constitucional, não podendo ter seu julgamento vinculado a outro. Nos termos do voto do ministro Luís Roberto Barroso, no início do julgamento virtual dos embargos de declaração nos Temas 881 e 885:
“Em sequência, ressalto, ademais, que o julgamento realizado por outras Cortes não vincula o Supremo Tribunal Federal, que aprecia as questões jurídicas tendo a Constituição como parâmetro. Conforme salientado no voto da ministra Rosa Weber, “a modulação dos efeitos de pronunciamentos desta Corte não compete a nenhuma outra Corte, mas, única e exclusivamente, a esta própria Casa. Vale dizer, se o STF não modulou os efeitos de sua decisão, nenhum outro Tribunal poderá fazê-lo'”.
Essa argumentação é contraditória com a própria jurisprudência do STF e, por si só, deveria impor a alteração do entendimento pela não modulação de efeitos quando do julgamento de mérito em fevereiro de 2023.
É contraditória — e fere a isonomia — porque o STF já decidiu, em mais de uma oportunidade, por modular os efeitos de suas decisões quando verificado precedente anterior do STJ em sentido contrário; e o fez em favor da Fazenda. Seja no Tema 69 ou no Tema 962, decidiu o STF que, uma vez que o STJ teria se manifestado, em momento anterior, pela legalidade das exações depois declaradas inconstitucionais, o requisito de “segurança jurídica” para modulação seria evidente, uma vez que o Fisco teria depositado a sua confiança no precedente vinculante da Corte Superior.
A título de exemplo, no julgamento dos Edcl. no RE 574.706/RS (Tema 69), a ministra Carmen Lúcia decidiu pela modulação de efeitos por constatar que, uma vez existente decisão anterior do STJ em sentido contrário ao que o STF tinha então decidido, havia superado entendimento predominante e, portanto, cabível a modulação de efeitos:
“E o Superior Tribunal de Justiça tinha entendimento sumulado em sentido diametralmente oposto, conforme faziam certo os enunciados 68 e 94 de sua Súmula de jurisprudência (revogados em 27/3/2019). […] Portanto, está mais do que evidenciada a viragem jurisprudencial, fator que habilita o SUPREMO a modular os efeitos de sua decisão, conforme autoriza o § 3º do art. 927 do Código de Processo Civil de 2015.”
Isso é, naqueles casos, o entendimento do STF, ao contrariar entendimento anterior do STJ, promovera “alteração de jurisprudência”, o que seria motivo suficiente para ensejar e permitir que a modulação de efeitos da decisão se desse em prol da Fazenda. Contudo, no caso dos Temas 881 e 885, embora os contribuintes tenham depositado a sua confiança no entendimento vinculante exarado pela Corte Superior no REsp 1.118.893, a Corte Suprema define, agora, a inaplicabilidade da modulação, ressaltando que considerar o precedente de outra corte para tal seria “usurpação de competência”.
O caso e sua fundamentação mostram uma política de dois pesos e duas medidas para modular os efeitos em matéria tributária: as decisões do STJ só garantem a segurança jurídica se forem em prol da Fazenda, e não do contribuinte. Fere-se, ao assim se decidir, o aspecto objetivo de controle da impessoalidade do julgador, que tem parâmetros diferentes para casos semelhantes, distinguidos apenas por quem será o beneficiado.
Soma-se a esses pontos o fato de que o STF, em variadas oportunidades anteriores, declarou que a matéria dos Temas 881 e 885 seria de índole infraconstitucional, e demandou a remessa dos casos ao STJ [3]. Foi então que a Corte Superior, vendo-se obrigada a decidir face a declaração de que a matéria não deveria ser analisada à luz da Constituição, firmou o entendimento exarado no REsp 1.118.893.
Vemos, portanto, que, em relação à justificativa do STF sobre a ausência de razões suficientes de segurança jurídica para permitir que sejam modulados os efeitos da decisão de mérito proferida em fevereiro de 2023, há obscuridade e contradição suficientes a ensejar, ao mínimo, o esclarecimento do julgado pela via dos embargos de declaração; e, com sorte, a sua reconsideração.
O mais preocupante, sem dúvidas, é o entendimento da corte que as decisões do STJ não lhe vinculariam e, portanto, não demandariam a modulação dos efeitos de decisão divergente pelo STF. A questão não é, ao nosso ver, se há vinculação ou não, mas sim a contradição na jurisprudência da corte, que já utilizou-se de precedentes do STJ como razões suficientes para permitir que os efeitos de decisão fossem modulados em benefício da Fazenda; e, se deve julgar-se like case alike, o mesmo entendimento deve ser aplicado no presente caso em prol do contribuinte.
Se quer entender o STF, agora, que precedentes do STJ não são mais suficientes para permitir a modulação de efeitos em seus julgados, a única forma de fazê-lo sem ferir a confiabilidade dos indivíduos é “superando o precedente” dessa própria alteração de entendimento — acontecida no bojo da própria corte, sobre a possibilidade de modular — para o futuro. Aplicar-se-ia, assim, uma espécie de “modulação de entendimento” em forma técnica mais parecida com a concepção de Benjamin Cardozo sobre a aplicação do prospective overruling pela Suprema Corte Americana: informa-se a superação do entendimento, mas decide-se o caso atual de acordo com a jurisprudência até então existente [4]. Tal técnica permitiria que todos fossem sinalizados da alteração do entendimento para casos futuros, enquanto seja assegurado que, no momento, fosse aplicada a norma até então declarada pela Corte na matéria modulação de efeitos em matéria tributária.
De toda forma, a manutenção da fundamentação, nos termos que é empregada no Acórdão dos Temas 881 e 885, é causa e sintoma de um ordenamento jurídico inseguro que não permite a identificação dos motivos e do direito, sendo imperativo — senão a própria modulação — o esclarecimento coerente quanto às justificativas empregadas lá em fevereiro de 2023.
[1] Tese firmada: “Não é possível a cobrança da Contribuição Social sobre o Lucro (CSLL) do contribuinte que tem a seu favor decisão judicial transitada em julgado declarando a inconstitucionalidade formal e material da exação conforme concebida pela Lei 7.689/88, assim como a inexistência de relação jurídica material a seu recolhimento. O fato de o Supremo Tribunal Federal posteriormente manifestar-se em sentido oposto à decisão judicial transitada em julgado em nada pode alterar a relação jurídica estabilizada pela coisa julgada, sob pena de negar validade ao próprio controle difuso de constitucionalidade”.
[2] Conforme consta a frase completa do relatório do ministro Teori Zavascki: “Ressalva-se desse entendimento, quanto à indispensabilidade da ação rescisória, a questão relacionada à execução de efeitos futuros da sentença proferida em caso concreto, notadamente quando decide sobre relações jurídicas de trato continuado, tema de que aqui não se cogita”.
[3] A própria corte faz referência a isso quando da afetação de repercussão geral dos Temas 881 e 885, julgada em 25 de março de 2016.
[4] Nos termos do Justice Benjamin Cardozo: “The rule that we are asked to apply is out of tune with the life about us. It has been made discordant by the forces that generate a living law. We apply it to this case because the repeal might work hardship to those who have trusted to its existence. We give notice, however, that any one trusting to it hereafter will do so at his peril” (CARDOZO, Benjamin, citado em Prospective overruling and retroactive application in the Federal Courts. The Yale Journal, vol. 71, n. 5, 1962, p. 911).
Por: Lucas Armani Tomazi