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A bitributação sobre os produtos digitais por download ou streaming

Foto de Polina Tankilevitch no Pexels
Portanto, a meu ver, inexiste sequer competência tributária dos Estados e Municípios para cobrança de ISS e ICMS sobre tais produtos, muito menos para cobrança de ambos cumulativamente sobre a mesma hipótese de incidência.

Não se pretende aqui rediscutir a tributação incidente sobre o software de prateleira, aquele padronizado, ou sobre o personalizado, elaborado por encomenda. Isso porque o Supremo Tribunal Federal acolheu a tese de que o software é serviço, sujeito ao ISS, quando desenvolvido por encomenda direta do adquirente/consumidor; e é mercadoria, sujeita ao ICMS, quando desenvolvido para ser vendido em série (software de prateleira), se elaborados por mídia em meio físico.

O problema agora é outro. Com o avanço da tecnologia, novos negócios jurídicos têm surgido, envolvendo produtos que desafiam os conceitos previstos no ordenamento jurídico pátrio para fins de incidência tributária. A maior dificuldade tem sido o enquadramento das atividades digitais realizadas como sendo uma mercadoria ou um serviço.

É evidente que a complexidade na conceituação das ferramentas digitais não tem impedido os fiscos estaduais e municipais de se intitularem, ambos, sujeitos ativos da obrigação tributária sobre as atividades de softwares e plataformas digitais (por download ou streaming), independentemente da padronização ou customização, tampouco da transferência ou mera disponibilização de conteúdo, nascendo novo conflito de competência entre Estados e Municípios.

A origem desse conflito nasceu com a introdução de novas hipóteses de incidência do ISS por meio da LC 157/2016, em especial os itens 1.04 e 1.09 na Lista Anexa da LC nº 116/2003.

O item 1.04 descreve como sendo serviço a elaboração de programas de computadores, inclusive de jogos eletrônicos, independentemente da arquitetura construtiva da máquina em que o programa será executado, incluindo tablets, smartphones e congêneres, enquadrando-se aí o software por download.

E o item 1.09 autoriza os municípios a tributarem as atividades desenvolvidas pelas plataformas de distribuição de conteúdo e vídeos, através da tecnologia streaming, ao dispor que a mera disponibilização, sem cessão definitiva, de conteúdo de áudio, vídeo, imagem e texto por meio da internet, respeitada a imunidade de livros, jornais e periódicos (exceto a distribuição de conteúdo pelas prestadoras de Serviço de Acesso Condicionado, de que trata a Lei no 12.485, de 12 de setembro de 2011, sujeita ao ICMS), está sujeita à incidência de ISS.

A partir disso, diversos municípios brasileiros passaram a introduzir em suas legislações municipais os novos serviços digitais tributados pelo ISS, sendo Porto Alegre uma das primeiras capitais a iniciarem a cobrança, já em março de 2017.

Pois bem, não bastasse tributarem atividades que, a meu ver, desbordam do conceito constitucional de serviço, uma vez que se trata de mera cessão de uso de conteúdo e licença de uso de direitos autorais, após a LC 157/2016, sobreveio o Convênio nº 106/2017, celebrado pelo Conselho Nacional de Política Fazendária (CONFAZ), disciplinando os procedimentos de cobrança do ICMS incidente nas operações com bens e mercadorias digitais, comercializados por meio de transferência eletrônica de dados ou disponibilização de conteúdo, ainda que por intermédio de pagamento periódico.

O Convênio nº 106/2017 denominou de bens ou mercadorias digitais as mesmas atividades descritas nos itens 1.04 e 1.09 da Lista Anexa à LC 116/2003. Portanto, os contribuintes que comercializam software por download e disponibilizam conteúdo pela tecnologia streaming estão também sujeitos ao pagamento de ICMS.

Como é cediço, o sistema tributário nacional veda a bitributação, motivo pelo qual estes dois impostos, ICMS e ISS, não podem incidir de maneira concomitante sobre o mesmo fato gerador.

Além disso, o malfadado convênio é eivado de inconstitucionalidades. Primeiro, porque a mera disponibilidade de conteúdo através da plataforma streaming não pode ser considerada uma mercadoria digital, uma vez que “mercadoria” pressupõe transferência de titularidade. Quando assistimos a um filme na Netflix, por exemplo, não o estamos adquirindo, temos apenas o direito de acesso àquele vídeo, somente enquanto estivermos pagando a mensalidade, e dentro da própria plataforma que oferece o produto.

Segundo, porque não pode um simples Convênio do CONFAZ, tampouco um mero Decreto, como fez o Estado de São Paulo, dispor sobre normas que definam fator gerador, base de cálculo, contribuintes e responsáveis tributários, pois tais matérias somente podem ser disciplinadas por lei complementar, a teor dos arts. 146, III, “a” e 155, §2º, XII, todos da CF/88. 

E, terceiro, porque parece forçado concluir que a transferência de software por download, sem a necessidade de mídia de suporte, constitui fato gerador do ICMS, eis que não configura uma efetiva circulação da mercadoria, já que se trata de um bem incorpóreo. Não esqueçamos que o Plenário do STF ainda não julgou a ADIN 1945, que trata justamente da matéria em questão.

Enfim, ainda que os argumentos expostos sobre as inconstitucionalidades das exações tributárias fossem desacolhidos, a competência tributária foi outorgada para apenas um ente federativo, e não aos dois, pois, se incide ICMS, não pode incidir ISS e vice-versa.

O conflito de competência está presente justamente pela impossibilidade de identificar a presença das materialidades constitucionais do ISS e ICMS nas operações digitais. Os termos “serviço” e “mercadoria”, utilizados pala Constituição Federal para definir competências tributárias, possuem o sentido que lhes era e sempre foi dado pelo Direto Privado, nos termos do art. 110 do CTN, não podendo a legislação infraconstitucional lhes dar outro sentido, tampouco ampliar seu campo de abrangência.

Portanto, a meu ver, inexiste sequer competência tributária dos Estados e Municípios para cobrança de ISS e ICMS sobre tais produtos, muito menos para cobrança de ambos cumulativamente sobre a mesma hipótese de incidência.

Não se está aqui a defender que os ganhos das grandes empresas digitais não sejam tributados. É evidente que estas também devem contribuir para os cofres públicos, todavia, o dever fundamental de pagar impostos está submetido às regras constitucionais de outorga de competência tributária, razão pela qual não há outro caminho para a solução do problema senão uma Emenda Constitucional.


Por Jussandra Hickmann Andraschko


27/03/2019

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